O outro

Mania humana: enxergar no outro o diferente. Exercer nele todo tipo de discórdia. E julgá-lo moralmente sem despir-se da própria moral. Ignorar suas qualidades, somente pelos seus defeitos. Fazer dele escravo do mundo. Ser-lhe indiferente. Encará-lo como pedra: o concreto que ergue "estranhas catedrais". E buscar em Deus legitimidade para isso.

terça-feira, 20 de janeiro de 2009

Reflexões apaixonadas sobre a posse

Definitivamente, tenho que interromper o diário de viagem.
Sei que é clichê dizer que hoje é um dia histórico. Mas ninguém nega o clichê. É óbvio demais o porquê. Ele tinha todos os atributos para não ser sequer um presidenciável norte-americano; que dirá presidente. Afinal, quem na política estadunidense, em condições normais de temperatura e pressão, lançaria alguém com este nome: Barack Hussein Obama? Sendo negro, então, e filho de queniano... jamais!, eu diria.
É simples assim porque me lembro de uma reportagem irreverente – pra variar – do programa CQC, no dia das eleições americanas, em que uma republicana fanática dizia: “uma vez muçulmano, sempre muçulmano!”. E a outra também não tinha vergonha de esconder o medo de ser governada por um afro-americano (para usar uma expressão politicamente correta, da qual ela abriu mão).
Mas, como eu disse, nas CNTP. E as condições de temperatura e pressão, nos Estados Unidos e no mundo, definitivamente, estão bem anormais. Não que eu não tenha torcido a cada instante por ele, mas a verdade é que, naquela sociedade, dificilmente ele seria eleito se o governo anterior não tivesse sido representado por oito anos desastrosos que culminaram com uma crise econômica de um único precedente em toda a história do capitalismo financeiro.
Dirão, é verdade, que a eleição de Obama já sinaliza um recrudescimento da tolerância entre os ianques. Pode ser. Mas ainda acho que a lição de respeito mútuo que os americanos estão dando não estaria ocorrendo se não fosse a intolerância étnica radicalíssima de George W. Bush.
Por essa e outras, costumo acreditar nos ditados populares. Afinal, se é assim mesmo, há males que vem realmente para o bem.
Apesar disso, uma andorinha só não faz verão, é claro. Se é verdade que o momento histórico favoreceu a ascensão do primeiro negro à Casa Branca, também é verdade que não era qualquer negro, nem qualquer branco, vermelho ou amarelo, que conseguiria engajar tanta gente num projeto de governo (e liderança).
É claro que só o fato de ter aquele nome, aquela ascendência e aquela cor seriam capazes de agregar não só o povo americano, mas o mundo inteiro em torno desse projeto. Mas é que sua figura é por demais agregadora. E suas palavras também.
No discurso de posse, devem saber, ele citou a época não muito remota em que seu pai não podia “ser servido num restaurante local”. Como citou a guerra civil, o racismo e a intolerância, de que certamente também foi vítima em algum momento de sua vida.
Mas em suas palavras não havia rancor. Havia, sim, esperança... Havia vontade. Havia ação!
E, quando recua no aspecto ambiental, pensando em energia solar e eólica e rechaçando que nossos filhos vivam num mundo superaquecido; quando propõe uma relação de interesse e respeito mútuos com os muçulmanos; quando ressalta o histórico imigratório norte-americano, elencando cada uma das etnias que comportam os cidadãos estadunidenses; quando se dirige às nações mais pobres sinalizando um estender de mão para que suas plantações gerem bem-estar às suas populações... quando tudo isso, então todos também sinalizam a ele, e ao povo americano, um estender de mão.
Mais interessante é a humildade do presidente. A história de liderança dos Estados Unidos sempre foi marcada por arrogância e autoritarismo. A liderança de Obama não. A liderança de Obama não é arrogante, porque não atribui a ele a posse de uma fórmula que salvará o mundo; pelo contrário, ela assume que seus objetivos só serão esgotados se outros líderes e todos os povos do mundo também se engajarem neles; ela convoca as pessoas a trabalharem pelo bem comum. A liderança de Obama também não é autoritária; pelo contrário, clama pela defesa dos direitos humanos e opta pelo diálogo nas questões ambientais; mitiga a guerra e ascende a tolerância ao grau máximo de importância entre os princípios humanitários.
Tudo isso sem ignorar os valores puritanos, tão arraigados à cultura norte-americana - aliás, bastante pertinente, historicamente, mencioná-los no discurso inaugural. De fato, Barack, há algo de velho nesse seu projeto: a liberdade, o trabalho, a honestidade como princípios a serem perseguidos (e, mesmo entre eles, a curiosidade é muito nova, e bastante peculiar, porque faz lançar um novo olhar sobre o diferente). Mas isso não o leva ao conservadorismo: seus “desafios” e seus “instrumentos” são realmente novos, muito novos. Ao menos no discurso. Agora queremos ver na prática...

2 comentários:

Tati Bertolucci disse...

To por aqui, na antiga terra de Obama (sim ele viveu na Indonesia em sua infância). Queria ter tanta esperança nesse senhor como todos... Quero dizer, que é óbvio que as coisas vão mudar em relação à gestão Bush, isso não tenho dúvida. A pergutna é, muda tanto assim? Porque pra fazer qualquer coisa dessas que o mundo espera tem que mudar MUITO. Talvez pra isso sirva a crise. Espero que sim...

Fernanda disse...

Não existe um messias...

Mas existe alguém com vontade e capacidade de mudar alguma coisa... Nisso eu acredito (e espero que não me frustre).