O outro

Mania humana: enxergar no outro o diferente. Exercer nele todo tipo de discórdia. E julgá-lo moralmente sem despir-se da própria moral. Ignorar suas qualidades, somente pelos seus defeitos. Fazer dele escravo do mundo. Ser-lhe indiferente. Encará-lo como pedra: o concreto que ergue "estranhas catedrais". E buscar em Deus legitimidade para isso.

domingo, 18 de janeiro de 2009

CHILE I - As trapalhadas

Os dorminhocos 15 hs. Mal saíamos da inspeção agropecuária no aeroporto de Santiago, de papo com um casal simpático que acabávamos de conhecer – porque todo casal fica amigo de outro casal durante a viagem; no nosso caso foi durante o vôo mesmo –, e Bárbara já estava à nossa espera. Fomos até o hotel cinco estrelas onde ficamos hospedados, um aconchegante apartamento no bairro da Providência, recém construído, arejado como jamais vi e dono de um “serviço” espetacular. E almoçamos na companhia de nossas anfitriãs, batemos um bom papo e entregamos os presentes: muitos livros sobre o regime militar brasileiro, um livro e um filme do Capitão Nascimento, um João Ubaldo Ribeiro, O Cheiro do Ralo e outras coisitas mas. Bem, acordamos às sete da manhã, que tal descansarmos antes de sairmos pra beber num bar à noite? Bem, eu topo. Então tá. Ok, fiquem à vontade. Eu, que tenho o sono leve, acordava de meia em meia hora, percebia ainda a claridade do dia e me tranquilizava (sem trema) em dormir mais um pouquinho. Até que em dado momento acordo e já é noite. Pego a toalha, o shampoo, o condicionador, o sabonete, a escova de dentes e o desodorante e me dirijo ao banheiro. O trajeto calmo e silencioso, no fim do qual percebi que a porta do outro quarto estava fechada, me despertou curiosidade sobre o horário. E foi quando o clássico relógio de parede pendurado na cozinha me informou que era 00:30. Não preciso dizer que voltei ao quarto, comuniquei o namorido do ocorrido e voltei a dormir. No dia seguinte descobri que o Chile escurece às 21:00. A poliglota Passamos o reveillon numa rua onde todos se conheciam – menos nós. No meio de um número assustador de chilenos reunidos, acredite, dois brasileiros viram atração. E aí você, que não sabe nem contar até dez em espanhol, tem que entender aquele sotaque esquisito (quero dizer estranho, e não gostoso) – em que se substitui o S pelo R e no qual as gírias são onze em cada dez palavras – e ainda fazer com que os outros entendam o seu portunhol. No fim, eu estava falando cinco línguas diferentes: Português, Espanhol, Portunhol, Spanglish e uma outra, que era a soma de todas elas.

O folgado Levamos à festa meia dúzia de cervejas. E, chegando lá, procedemos à localização do congelador, como bons brasileiros que somos. - Olá, onde fica o congelador? - Olá. Para quê? - Para colocar estas cervejas. - Ok, mas quem é você? - Eu vim com o Felipe. - Que Felipe? - O amigo do... puxa, eu esqueci o nome... - Olha, eu acho que você se enganou de festa. - Não, não me enganei, eu vim com a Bárbara. E passa o Daniel. - E aí, Zé, tá se divertindo? - Ah, então você o conhece! - Claro, são os amigos brasileiros de que te falei. - Ah!!! Quando for assim avise. Eu estava quase chamando o Carabinero (policial) da família, hahaha! Moral da história: nunca pergunte onde fica o congelador no Chile. Você pode ir em cana.

A música Tocou a Dança da Manivela no reveillon dos chilenos. Eles sabiam a coreografia melhor que eu. A gatinha Em Viña del Mar, ficamos hospedados num Bed and Breakfest daqueles que te fazem se sentir em casa. Ninfa Rojas – sim, sim, era esse o nome da anfitriã. Mas era muito atenciosa. No primeiro dia, pedimos uma dica gastronômica e ela indiciou o La gatita, restaurante de frutos do mar que fica na beira da praia em Con Con. E de Con Con tudo o que eu tinha ouvido, inclusive da Ninfa, era que se tratava de uma cidadezinha onde as pessoas viviam da pesca. Uma pequena e rústica Vila de pescadores, por certo, pensei eu. Então, disse ela, você desce ali naquela avenida, ó, e pega o ônibus 601 ou 602. Ele vai andar sempre pela orla. É só ficar observando: quando vir o Iate Clube, peça para o motorista parar. É a três quadras dali. Ok. Pegamos o 602. E o bichinho começou na orla, mas, na hora da bifurcação, foi para o lado direito – a orla ficava para a esquerda. Descemos sem saber onde estávamos e perguntamos a um simpático homem onde ficava o La gatita – sim, porque, do jeito que ela disse o restaurante era famoserrérrimo!, ele tinha que saber qual era. Olha, você anda uma meia hora ali pra baixo, ali tem uns restaurantes de frutos do mar. Procura ali. E pra não andar meia hora, depois de já ter andado mais meia hora, e depois não encontrar o bendito La gatita, que o cara não conhecia, perguntamos a uma comerciante local. Era lá mesmo. E era mais meia hora de caminhada mesmo. Pegamos o coletivo (transporte que existe no Chile que se assemelha a um táxi, mas é coletivo). Ali percebemos que de vilarejo a cidade não tinha nada: hotéis de luxo, empreendimentos imobiliários milionários, etc. Troço de louco. Na porta do restaurante, 889.657.213 pessoas numa fila monstruosa, esperando para almoçar. Que o restaurante era bom não tem dúvida. Mas não pagamos pra ver. Escolhemos outro sob indicação de uma artesã local, mas ignoramos o que o nome – Calipso – poderia sugerir de ruim. Ps: foi a única experiência gastronômica ruim no Chile. O albergue Para Pucon reservamos um albergue pelo hostel.com e, assim que pagamos o sinal, recebemos um e-mail com fotos espetaculares do lugar e da cidade, com um folder profissa dizendo que o cara era o melhor, fazia e acontecia e oferecia as melhores opções de serviço de turismo de aventura. Era quase um hotel: piscina, sauna, churrasqueira, etc. Chegamos em Pucon umas oito da manhã e fomos direto pra lá. O portão de madeira baixo nos deixou ver, mesmo antes de entrar, que a grama não estava aparadinha como nas fotos. E a casa em si parecia mal assombrada: quase não entrava luz. A funcionária tinha ficado sabendo às onze da noite do dia anterior da reserva que tinha sido feita uma semana antes. O cara ofereceu café da manhã. Depois a mulher jogou na cara que era um favor porque “aqui é assim: você dorme, você toma café da manhã; mas por uma cordialidade estou oferecendo o café a vocês”. A piscina era preta. A sauna servia para guardar malas. O box do banheiro privado era mais sujo do que o do compartilhado. A roupa de cama estava puída. E toda vez que íamos tomar banho tinha que entrar algum funcionário no quarto pra acender o aquecedor. No primeiro dia conhecemos a cidade, voltamos para tomar banho e saímos mais à tardinha para comer alguma coisa. Esbarramos com um funcionário meio nerd no quintal. Ele nos perguntou o que iríamos fazer e aquilo foi a gota d´água: se o Zé Mauro já tinha alguma desconfiança em relação ao lugar, ali ele passou a ter certeza. Zé Mauro n.º 1: Saiu com todo o dinheiro e todos os bens de valor (celular, máquinas fotográficas, etc). Zé Mauro n.º 2: “Tomara que esse hostel não seja igual ao daquele filme O Albergue!”. Zé Mauro n.º 3: Enviou e-mail a todos os amigos informando o endereço do albergue. Zé Mauro n.º 4: Ligou a única vez da viagem inteira para a mãe para fornecer o endereço do albergue. No fim eu também estava paranóica e tive pesadelo a noite inteira. Alguém tentava abrir a porta do quarto. Outra pessoa se escondia atrás da cortina. E uma terceira ficava no banheiro de plantão para o caso de eu querer fazer alguma coisa por lá. Mas foi só na primeira noite. Depois acostumamos com o ar sinistro do lugar. Moral da história: não se hospede nunca no Étnico Eco Hostel em Pucon. A caminhada Para ir de Pucon a Caburgua era muito simples: pegar um ônibus no terminal JAC e descer na frente do Lago Caburgua. Mas quando descemos o ônibus continuou o trajeto, subindo por uma estradinha de terra que estava sendo asfaltada, logo à esquerda. O que será que tem pra lá? Sei lá, vamos à praia. A Praia Negra era bonita, mas não tanto quanto a do Lago La Poza em Pucon. - E onde será que fica essa Praia Branca que está aqui no mapa? - Não sei, mas que tal descobrirmos depois do almoço? E como estávamos mesmo famintos, resolvemos voltar para a estrada, onde havia alguns hotéis e restaurantes. Passando pela tal estradinha à esquerda, vimos uma placa indicando que ali ficava o restaurante El mirador, de comida caseira, a 1,5 km de onde estávamos. Mais abaixo outra placa: Playa Blanca: 2km! Beleza: subimos a pé pela estradinha, comemos no restaurante, que deve ter uma vista maravilhosa, e depois vamos à Praia Branca, que deve ser mais bonita que a Praia Negra. Andamos, andamos, andamos, andamos... Andamos na estrada deserta de gente sob a poeira que os tratores do asfaltamento nos fazia engolir por cerca de uma hora, té encontrarmos o tal do El Mirador, que de mirante não parecia ter nada. E andamos então mais uns 20 minutos até chegar à praia, onde havia uma lanchonete. Lógico que, com aquela fome, fomos direto pra lá. O papo do Zé com o garçom: - Oi, tudo bem? Me diga uma coisa:pra esquerda e pra direita desta praia só tem pedra mesmo? - Sim, ali pra direita, tem pedra. Mas caminhando uns quinze minutos pra lá você chega na Praia Negra. Sem mais comentários.

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