O outro

Mania humana: enxergar no outro o diferente. Exercer nele todo tipo de discórdia. E julgá-lo moralmente sem despir-se da própria moral. Ignorar suas qualidades, somente pelos seus defeitos. Fazer dele escravo do mundo. Ser-lhe indiferente. Encará-lo como pedra: o concreto que ergue "estranhas catedrais". E buscar em Deus legitimidade para isso.

quarta-feira, 13 de outubro de 2010

Filme de ação, reação ou... passividade?

Juro, sem hipocrisia, que não tinha pressa em ver o Tropa de Elite 2. Não juro que não queria ver. Só juro que não precisava ter sido logo no primeiro fim de semana dele no cinema. Mas as circunstâncias são desfavoráveis a este meu momento de confronto com a ansiedade. Aliás, a ansiedade é geral.

Na primeira edição do filme, não se falava em outra coisa. Nesta, se o papo nas mesas de bar estava um pouco mais variado, as filas de cinema e os números da bilheteria não refletiam o mesmo. Não há como fugir do fato de que todos querem vê-lo o mais rápido possível.

Bem, então fui por estas companhias que me carregam por aí, e também pelo filme, é verdade.

Tinha alguma coisa já nesta cabeça oca para postar aqui, mas meu mestre e chefe disse hoje algo que ele havia escrito sobre o filme no facebook. Bagunçou boa parte das minhas ideias, mas elas ainda estão aqui, então é o que vou dizer:

Não adianta negar, Julita Lemgruber em uma oportunidade no auditório da Universidade Cândido Mendes disse bem: a primeira edição do filme "glamurizava" as páticas de tortura e execução levadas a cabo pelo BOPE.

Meu irmão brigou comigo quando eu usei o termo fascista para designar não o diretor José Padilha, menos ainda o autor Rodrigo Pimentel (nem digo José Eduardo Soares porque sua respeitabilidade é tão grande que nem é preciso ressalvá-lo), mas as ideias veiculadas pelo filme.

José Padilha e Wagner Moura chegaram a tentar explicar a mensagem depois do sucesso do filme, expresso nos aplausos dos espectadores às cenas de tortura nos cinemas, mas foi em vão.

Não acredito que eles pensem daquela forma. Não é possível que pessoas no mínimo curiosas pelo conhecimento e sedentas pela produção cultural pensem assim.

Mas então houve ali no mínimo um claro erro na escolha da perspectiva da trama.

Não me deixem mentir os que discordarem, porque creio que sejam poucos: num livro, o narrador, personagem ou não, é o veículo da trama. É ele quem conduz a história e nos remete a detalhes que talvez sequer pudessem passar à vista de outro narrador, ao mesmo tempo em que omite fatos e descrições que poderiam ser facilmente percebidos por outra pessoa que o autor poderia, por qualquer razão de índole ideológica ou simplesmente poética, escolher para narrar o enredo. Certamente não foi à toa que Marion Bradley escreveu "As Brumas de Avalon".

É claro que o leitor, malgrado não esteja livre - nem deva estar - de suas próprias reflexões, assimila a mensagem de maneira natural, porque o texto é escrito para isto: envolvê-lo na trama tanto quanto estão envolvidos os personagens.

E isso é ainda mais evidente quando falamos de um narrador personagem. Na arte cinematográfica, que se utiliza diretamente de imagens e sons, nem se fale!

Meu irmão me rebateu mencionando um dado filme em que o narrador protagonista era um psicopata (isso ainda existe?) e nem por isso se saía da sala de cinema com a ideia de que matar a troco de nada era uma coisa boa.

É claro que é permitido a qualquer artista fazer essa espécie de experimentação, na literatura, na televisão ou no cinema. Não se negue, porém, que para isso é preciso coragem e, sobretudo, cuidado, muito cuidado.

Lembro-me do filme "Efeito Dominó", dirigido por Roger Donaldson, que conta a história de um assalto a banco encomendado pela coroa inglesa para evitar que um foragido da justiça publicasse fotos de uma orgia de que teria participado Margareth Thatcher, por ele mantidas num cofre de uma agência bancária. Ao fim do filme eu estava torcendo para que o plano criminoso desse certo. Se isso não foi influência da forma como o roteirista e o diretor contaram a história, que envolvia situação de extorsão dos assaltantes pela coroa inglesa, me salvem, pois estou em sérias dúvidas sobre meus valores!

Por isso que me parece um erro julgar que, por meio das palavras de um narrador como o Capitão Nascimento, que defende claramente as práticas de tortura e execução do BOPE, é possível transmitir de maneira clara e coerente uma mensagem contrária à corrupção policial, aos baixos salários recebidos pelos integrantes das corporações policiais e à política de seguramça pública que hoje se adota no Rio de Janeiro, especialmente num contexto em que o contraponto do protagonista eram os "traficantes malvados", alvo de ódio quase generalizado da sociedade.

Não há como esperar que se interpretem aquelas cenas sem nebulosidades no sentido em que o filme, segundo o diretor e o ator protagonista (com todo o respeito que eles merecem),  pretendeu ser interpretado.

Pois bem. Não sei se houve essa percepção, seja pelas críticas dos setores sociais que defendem a democracia e os direitos humanos, seja pelos aplausos recebidos pelo Capitão Nascimento no escurinho do cinema. O fato é que desta vez José Padilha (e talvez até Rodrigo Pimentel, não li o livro para afirmar) reorganizou suas (?) ideias, deixou mais clara a mensagem que pretendia, segundo ele próprio, transmitir: a de que o combate à violência, nos moldes em que é feito hoje, não combate, mas fomenta a violência.

Precisamos de fato compreender que nossos representantes, em sua maioria, têm interesses na manutenção deste projeto neoliberal de Estado, que envolve a política de segurança pública da marginalização. 

Em uma determinada cena do filme um defensor dos direitos humanos faz uma conta matemática, que de matemática talvez nada tenha, mas cujo objetivo é simplesmente demonstrar a irracionalidade do nosso sistema de justiça criminal, sobretudo do nosso sistema prisional. A conclusão era a de que daqui cem anos 100% dos brasileiros estarão presos.

Numa conversa informal, alguém criticou a falta de técnica nos cálculos e acrescentou que, a rigor, uma boa política de segurança pública é justamente aquela que aumenta o número de presos, porque se pauta no incremento do policiamento ostensivo. Esta parece ser a visão da maioria da classe média.

Mas penso que uma boa política de segurança pública é a que reduz o número de presos, como consequência da redução do número de crimes. Por que é isto o que nós queremos: viver em paz, e não viver presos.

O filme mostra de alguma forma que isso não costuma ser a preocupação dos nossos representantes.
Não obstante, colo aqui a opinião do mestre de que falei no começo, porque revela uma preocupação com a qual não havia ainda me atinado, mas que agora me aflige. É para dividir e discutir:

"É difícil ter uma opinião definitiva sobre o filme sem compará-lo ao primeiro (aliás, não há opinião definitiva sobre assunto algum).



E também é difícil pensar no filme como filme, obra de ficção, e não como um documentário que ...o filme não é.


Há muito do nosso cotidiano e isso é certo. Há, talvez, um esforço bem sucedido de reinventar o discurso do primeiro filme, que demonizava os traficantes de drogas. O demônio agora habita os milicianos. Há caminhos de violência e diálogo que estão superpostos, em algum momento, ou se antagonizam na maior parte do tempo.


Como filme, Tropa de Elite 2 é muito bom, essa é a minha opinião. Mas não se trata de uma síntese da "questão criminal", no Rio de Janeiro, tampouco aponta caminhos, sequer pretende, suponho, mas deixa ver por vários ângulos alguns dos atores desse drama cotidiano.


Meu maior receio é que a confusão entre ficção e realidade e o reducionismo, que o filme não tem como evitar, terminem por sugerir que a democracia, ou a democracia representativa, seja o pior de todos os demônios.


Fica a expectativa de que o público opte por enxergar na política o campo de luta para as necessárias transformaçõs e, exorcizando eventual visão demoníaca da vida, contribua para construir o entendimento de que todos nós carregamos responsabilidades, que não são delegáveis a Capitão Nascimento algum.


As dificuldades do dia a dia não desaparecem subitamente, do nada, ou da força, ainda que em tese "bem intencionada". Elas são superadas pelo suor coletivo."
Geraldo Prado