O outro

Mania humana: enxergar no outro o diferente. Exercer nele todo tipo de discórdia. E julgá-lo moralmente sem despir-se da própria moral. Ignorar suas qualidades, somente pelos seus defeitos. Fazer dele escravo do mundo. Ser-lhe indiferente. Encará-lo como pedra: o concreto que ergue "estranhas catedrais". E buscar em Deus legitimidade para isso.

terça-feira, 6 de abril de 2010

Arca de Noé

O povo de São Paulo mandou e-mails perguntando como estávamos por aqui. A família vai bem, obrigada.

O mesmo não pode ser dito do restante da cidade.

Um dos paulistas chegou a dizer que reza para que logo esse dilúvio pare, para que assim "a cidade volte ao estado maravilhoso de sempre".

De fato, as maravilhas da cidade maravilhosa se escafederam literalmente pelos ralos no dia de hoje - ou ficaram boiando por aí.

Isso impõe algumas reflexões mestras, até porque, por mais que queiramos aceitar os dados oficiais históricos, que dão conta de que não se via uma queda d´água neste nível desde 1966, o fato é que me lembro de alguns episódios, mesmo recentes, em que demorei a bagatela de três horas para me deslocar do Centro da Cidade até a minha casa, que fica a uma distância de no máximo 5 quilômetros. E ainda acresço minha parca memória infantil, que chama a atenção para várias enchentes lá pela metade da década de 90, uma das quais arrastou vários pertences de uns tios e umas primas minhas. Disso eu me lembro muito bem: na piscina deles tinha rato, cobra e peixe. Tudo arrastado pela água da chuva misturada à de um rio.

Daí porque, mesmo aceitando a informação do Prefeito de que as galerias pluviais da cidade estão limpas, fico me perguntando: cadê o plano de contingência? Na televisão, na internet e nos jornais impressos não faltaram fotos dos locais mais atingidos: onde estavam as autoridades públicas? Justiça seja feita, os bombeiros e a Defesa Civil tiveram um dia de cão, mas fora eles não se viu ninguém do poder público. Ninguém além do Eduardo Paes, do Lula e do Sérgio Cabral dizendo, sem correspondência à realidade, que estava todo mundo trabalhando. O Governador chegou a aproveitar um momento de distração nosso para dizer que "mesmo em situações de ausência de tensão as três esferas de poder trabalhavam incessantemente pelo Rio de Janeiro: hoje mesmo inauguraríamos uma UPA 24hs no Complexo do Alemão". Eleição à vista!

Fora isso, não vou aqui entrar na discussão sobre as políticas públicas de habitação e saneamento básico, que poderiam evitar as 96 mortes por soterramento e outras mais que virão por causa da leptospirose e outras doenças.

Mas, verdade seja dita, a culpa não é só das autoridades. Faz um tempo que me repudia a falta de educação consciência do carioca, que parece se deliciar com a falsa ideia de que nossas belezas naturais não são passíveis de destruição, principalmente se for só por um papelzinho de bala. Cansei de ver - e mesmo assim continuo vendo - pessoas jogando lixo no chão apesar de estarem a cinco metros de distância de uma lixeira pública (nisso as autoridades não pecam: há lixeiras por todo o espaço público do Rio de Janeiro).

Hoje, estamos num mar de lixo, que (não) escorre e leva a nossa beleza embora. Hoje, perdemos nosso bom-humor e nossa espontaneidade, substituídos pela tensão e pela raiva da natureza, dos políticos, e por que não de nós mesmos?

Torço sinceramente para que esses sentimentos se convertam em atitudes: as dos políticos - que apressem tudo o que há de necessário para que voltemos às nossas vidas, apesar de nossas perdas, e para que não passemos vexame em 2014 e 2016 - e as nossas - que enxerguemos o que há de melhor na nossa cidade com outro olhar, o da finitude, para que a preservemos sempre, sempre e sempre.

Porque as atitudes podem ser a nossa arca. Porque o Rio de Janeiro não merece passar por isto. Nós não merecemos de novo, não.