O outro

Mania humana: enxergar no outro o diferente. Exercer nele todo tipo de discórdia. E julgá-lo moralmente sem despir-se da própria moral. Ignorar suas qualidades, somente pelos seus defeitos. Fazer dele escravo do mundo. Ser-lhe indiferente. Encará-lo como pedra: o concreto que ergue "estranhas catedrais". E buscar em Deus legitimidade para isso.

sexta-feira, 22 de maio de 2009

Da rotina do deserto

Depois da rotineira e ríspida discussão sobre o porvir político e pequeno que desejava, ela atravessaria atordoada um campo repleto de gatos. Os gatos procriar-se-iam em crescente exponencial a cada dia, mas ela não perceberia a diferença dos números. A beleza das árvores, dos lagos, dos peixes, dos perus, dos pavões, das cotias, dos patos e das pontes não se esconderia jamais atrás do descuido do poder público. A travessia, porém, seria alheia a tudo. Terminaria num deserto de comerciantes que imporiam a qualidade de seus produtos na voz. Seriam tantas as vozes, roucas, plenas, agudas, graves, fanhas, molecas, sérias... Vozes de rádio fazendo marketing primitivo. Mas nenhuma delas se sobreporia às das cenas das rotineiras e ríspidas discussões sobre o porvir político e pequeno que desejava. Ela passaria por predinhos antigos, com fachadas destruídas e restauradas. Neles, porém, enxergaria um dedo em riste contra sua cara. Pararia à frente de restaurantes com odor de gordura, mas o cheiro de mofo das instalações do centro acadêmico ainda impregnariam sua memória. Esbarraria em mulheres vestidas a veludo. Só o que poderia sentir na pele, contudo, seria o suor nas pernas provocado pelo couro do sofá.
Provaria uma especiaria oferecida por um vendedor, mas o gosto da adrenalina misturada à saliva esconderia o ardor da pimenta
Ela atravessaria aquele deserto todos os dias. Todos os dias no deserto à sua volta e no oásis dos seus pensamentos.
Tão alheia a tudo que só poderia se dar conta anos depois, quando passaria por ali e perceberia como havia triplicado o número de gatos naquele campo, como os predinhos eram graciosos - e que pena que estariam tão destruídos -, como aquelas vozes a irritariam, como o cheiro de gordura lhe provocaria ânsia, como se esbarrariam com frequência as pessoas por ali.
Finalmente, provaria uma pimenta deliciosa e, sem titubear, levraria um frasco à casa.

Um comentário:

Anônimo disse...

Ei!