O outro

Mania humana: enxergar no outro o diferente. Exercer nele todo tipo de discórdia. E julgá-lo moralmente sem despir-se da própria moral. Ignorar suas qualidades, somente pelos seus defeitos. Fazer dele escravo do mundo. Ser-lhe indiferente. Encará-lo como pedra: o concreto que ergue "estranhas catedrais". E buscar em Deus legitimidade para isso.

quarta-feira, 20 de fevereiro de 2008

Giuseppe


Nasceu pros idos de 1920/1930. Filho de italianos imigrantes, teve uma infância feliz, embora pouco farta. “Muito dessa felicidade, Giuseppe diz, era porque eu já sabia do meu talento deeeeeeesde cedo!”

Boleiro nato. Melhor: goleiro nato. Branco (houve época em que isso era requisito), alto – muito alto para os padrões esportivos da época: uns 2m. Ombros e costas bem largos. Braços na mesma proporção. Físico perfeito para a posição.

Começou cedo e logo estava nas categorias profissionais. Hoje ele se orgulha do feito: “Não fui um Pelé, mas fui um bom goleiro. Bom o suficiente para contar histórias por aí”.

Bom mesmo. Lembra-se do Poy? O Rogério Ceni da década de 50, ele mesmo. Pois é, Giuseppe era reserva do Poy. Não tem mesmo motivos para não se orgulhar.

Ainda adolescente, conheceu uma moça (hoje, diríamos, menina). Casou logo, devia ter seus 22 anos.

Tereza era linda! “Ah!, essa mulher... Sem ela não teria sorrido metade das vezes em que sorri na minha vida!” Tereza foi, e é, sua grande paixão. Deu a ele três filhos: dois homens e uma mulher. Com idas e vindas, todos deram orgulho ao casal: profissão, casamento, netos...

A mais velha, Maria, sempre foi a mais centrada. Tal pai tal filha, encontrou cedo o grande amor de sua vida: Marcos Pedro. Com ele deu o primeiro neto a Giuseppe. Com ele construiu um lar. Não um lar só para cinco, mas para muitos. Sim, porque nele também cabia toda a família de Marcos Pedro, que tinha seis irmãos, quatro com filhos.

Ah!, o natal naquela casa... Lá se entendia o mais puro significado do natal! Os filhos e sobrinhos tinham, ali, pelo menos duas mães: a verdadeira e a Maria. E também ganhavam de quebra o pai ranzinza e carinhoso que era Marcos Pedro.

Em torno deles, reuniam-se todos. Todos em torno da mesa deles, na casa deles, que afinal era de todos. Mesmo quem não acreditasse em Deus ali acreditava: esqueciam-se as brigas, renovavam-se as preces, celebrava-se o bem e divertia-se muito. Entregeva-se à música e à dança... no videoquê preferencialmente. E, se práticávamos a gula, também repartíamos o pão.

Passados os anos, aposentado Giuseppe, ele já não era tão alto. A idade já o fazia curvar-se diante das pessoas. Mas continuava com saúde de atleta e, mesmo com o “encurtamento de altura”, era preciso dobrar para trás o pescoço se alguém quisesse travar com ele um diálogo de olhares sinceros.

A esposa, também contando seus setenta e poucos anos, desenvolveu habilidades e descobriu alguns hobbies. Crochê era o principal. As famílias todas não cansavam de encomendar colchas, blusas, casacos, calças... E ela não cansava de presentear os netos, e agora bisnetos, com seus badulaques manufaturados.

Certo dia, Giuseppe nos assustou.

“No hospital?!”

“Sim, operando o coração.”

Mas tudo ficou bem. Pena que naquele natal ele não pôde estar no nosso querido lar. Acabou ficando em casa. Não pela cirurgia, que havia sido "um sucesso", disse o médico, e não exigiu pouco mais que alguns meses  de recuperação. O fato é que, por dado motivo, ele não estava conosco naquela ceia.

Não por isso ele deixou de ligar. Maria atendeu:

-- Oi, pai! Tudo bem?

-- Tudo bem, minha filha, feliz natal!

-- Pra vocês também, pai!

-- Filha, este é o natal mais feliz da minha vida.

-- Rogo, papai, mas por quê?

-- Deus achou que marcaria um gol em mim, mas Ele se esqueceu...

-- Esqueceu-se de quê?

-- Que eu jogo na lateral esquerda, minha filha...

Os olhos de Maria desaguaram.

Marcos Pedro partiu alguns anos depois, antes de Giuseppe, e deixou saudades...

quarta-feira, 13 de fevereiro de 2008

Se minha vida fosse uma gramática...

Quando nasci eu era um ponto de gente. Mas não era um ponto final: era um ponto e ponto. Ponto começa com P, como pessoa. Era um ponto, com P de "pessoa no início da vida". Não me custou virar uma interrogação. Mas veja bem, se no caderno, pra transformar um ponto numa interrogação é necessário acrescentar apenas uma curvinha esquisita logo acima dele, na vida é bem mais complicado: são necessários muitos por quês, comos, quandos, ondes e quems. Os pontos finais das respostas só vieram depois de alguns anos, quando me tornei uma interjeição: ai! nossa! oba! ih! caramba! puxa! epa!... Ai!, que tempo bom, nossa! Tive muitas alegrias dignas de oba!, mas também várias trapalhadas típicas de ih!, sustos de caramba!, lamentos de puxa! e limites: epa! De repente tudo virou reticências. Não reticências quaisquer, mas dessas que os Machados de Assis usam pra deixar a gente na dúvida (Capitu traiu Bentinho, afinal, seu moço?!)... É que reticências aqui também podem se confundir com interrogação. Mas a pergunta dessa vez é outra: tô mais pra "e agora, josé?". Alguém me responde?

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2008

Se...

Se ligo no meio da tarde pedindo seu colo, é porque é confortável como pelúcia; se ofereço um abraço tão longo quando chega, é porque sua ausência deixa saudade; se o beijo é quente, é porque mais quente ainda é minha paixão; se não apago as luzes, é porque nunca tive alguém como você antes na vida; se tenho ciúme, é porque também - e antes - tenho amor; se peço uma opinião, é porque você é importante; se discordo da opinião, é porque sou teimosa; se planejo uma viagem, é porque quero fazê-la com você; se empresto um livro, é porque quero que leia (ok?!); se alugo um filme, é porque quero deitar no seu ombro; se digo que amo você, é porque é a mais pura - talvez a única - verdade na minha vida; se rio das suas piadas, é porque são engraçadas; se fico triste, é porque estamos longe; e se sou feliz, é porque tenho você ao meu lado.

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2008

Anedota

Ainda que pasmem os leitores, ainda que não acreditem e passem, doravante, a chamar este escritor de mentiroso e fátuo, a verdade é que, certo dia que não adianta precisar, entraram num restaurante de luxo, que não me interessa dizer qual seja, um ratinho gordo e catita e um enorme tigre de olhar estriado e grandes bigodes ferozes. Entraram e, como sucede nas histórias deste tipo, ninguém se espantou, muito menos o garçon do restaurante. Era apenas mais um par de fregueses. Entrados os dois, ratinho e tigre, escolheram uma mesa e se sentaram. O garçon andou de lá prá cá e de cá prá lá, como fazem todos os garçons durante meia hora, na preliminar de atender fregueses mas, afinal, atendeu-os, já que não lhe restava outra possibilidade, pois, por mais que faça um garçon, acaba mesmo tendo que atender seus fregueses. Chegou pois o garçon e perguntou ao ratinho o que desejava comer. Disse o ratinho, numa segurança de conhecedor - "Primeiro você me traga Roquefort au Blinnis. Depois Couer de Baratta filet roti à la broche pommes dauphine. Em seguida Medaillon Lagartiche Foie Gras de Strasbourg. E, como sobremesa, me traga um Parfait de biscuit Estraguèe avec Cerises Jubilée. Café. Beberei, durante o jantar, um Laffite Porcherrie Rotschild 1934. — Muito bem - disse o garçon. E, dirigindo-se ao tigre — E o senhor, que vai querer? — Ele não quer nada — disse o ratinho. — Nada? — tornou o garçon — Não tem apetite? — Apetite? Que apetite? — rosnou o ratinho enraivecido — Deixa de ser idiota, seu idiota! Então você acha que se ele estivesse com fome eu ia andar ao lado dele? Millôr Fernandes

sexta-feira, 1 de fevereiro de 2008

Não é que ele estava certo?

"Mas pra fazer um samba com beleza é preciso um bocado de tristeza é preciso um bocado de tristeza, senão não se faz um samba, não" Se ele não tivesse razão o cavaco não chorava.