Descia as escadas no ímpeto cotidiano de ir-se direto e sem devaneios ao conteúdo da geladeira, sem olhar para os lados nem imiscuir-se em diálogos fúteis ou úteis.
Desta vez era diferente. Algo lhe havia desviado o olhar às paredes da descida, onde havia uma enorme pintura de Bob Marley de autoria de um artista de rua desconhecido, da qual nunca se havia apercebido malgrado nascido e criado naquela casa, e diversos quadrinhos que desenhou nas aulas de arte do colégio construtivista em que sua mãe fizera questão que estudasse quando criança.
Pois era sua mãe, professora de literatura da rede municipal, dessas que defende contra todas as reações o uso do banheiro feminino pelo aluno trans-sexual, que o desviava do caminho reto e discreto que fazia todos os dias para praticar sem remorsos o pecado da gula:
- Mãe...
- Diga, meu filho... - respondeu sem sequer levantar as sobrancelhas da revista que lia meticulosamente sob a luz da mesa da sala.
- Enquanto você lê VEJA, o mundo acontece lá fora...
O outro
Mania humana: enxergar no outro o diferente. Exercer nele todo tipo de discórdia. E julgá-lo moralmente sem despir-se da própria moral. Ignorar suas qualidades, somente pelos seus defeitos. Fazer dele escravo do mundo. Ser-lhe indiferente. Encará-lo como pedra: o concreto que ergue "estranhas catedrais". E buscar em Deus legitimidade para isso.
domingo, 9 de janeiro de 2011
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