O outro

Mania humana: enxergar no outro o diferente. Exercer nele todo tipo de discórdia. E julgá-lo moralmente sem despir-se da própria moral. Ignorar suas qualidades, somente pelos seus defeitos. Fazer dele escravo do mundo. Ser-lhe indiferente. Encará-lo como pedra: o concreto que ergue "estranhas catedrais". E buscar em Deus legitimidade para isso.

terça-feira, 31 de março de 2009

Século XXI... pós-colonial?

Não é óbvio demais que muro lembra gueto? Apartheid? Palestina? Guerra Fria?
Dirão: é para conter o avanço de construções irregulares!
Para vocês tenho duas observações:
1) para conter o avanço de construções irregulares, construam regularmente em outros locais, onde as pessoas possam viver com dignidade;
2) não utilizem o meio ambiente como pretexto para oprimir quem já vive oprimido o suficiente.
Esta é a minha resposta para quem, na eleição, andou dizendo que o outro candidato era da elite e este era do povo.
O que mais me assusta é que a polêmica está mais tímida do que deveria estar. Assusta, mas não surpreende, a julgar pelos nossos canais de comunicação...

terça-feira, 24 de março de 2009

A história em nossas mãos

Hoje faz cinco anos que o Armênio não governa mais a FND. Hoje faz cinco anos que vivi talvez a maior e melhor experiência da minha vida. Hoje faz cinco anos que aprendi a fazer história. Hoje faz cinco anos que vejo a história acontecer. E, por achar conveniente, cito aqui: Hoje eu sonhei contigo, tanta desdita, amor nem te digo Tanto castigo que eu tava aflita de te contar Foi um sonho medonho desses que às vezes a gente sonha E baba na fronha, e se urina toda e quer sufocar Meu amor vi chegando um trem de candango Formando um bando mas que era um bando de orangotango pra te pegar Vinha nego humilhado, vinha morto-vivo, vinha flagelado De tudo que é lado vinha um bom motivo pra te esfolar Quanto mais tu corria mais tu ficava, mais atolava Mais te sujava, amor, tu fedia, empesteava o ar Tu que foi tão valente chorou pra gente, pediu piedade E, olha que maldade, me deu vontade de gargalhar Ao pé da ribanceira acabou-se a liça e escarrei-te inteira A tua carniça e tinha justiça nesse escarrar Te rasgamo a carcaça, descendo a ripa, viramo as tripas Comendo os ovos, ai, e aquele povo pôs-se a cantar Foi um sonho medonho desses que às vezes a gente sonha E baba na fronha e se urina toda e já não tem paz Pois eu sonhei contigo e caí da cama Ai, amor, não briga, ai, não me castiga Ai, diz que me ama e eu não sonho mais Chico Buarque

sábado, 21 de março de 2009

O leitor

Se você quer catarse assista a "O leitor".
No começo dá pra achar que é mais um clichê. Mas a trama nos surpreende a cada minuto. Vem um misto de sensações múltiplas, desde raiva até piedade.
Mal saí do cinema e já acrescentei à listinha aí ao lado.
Pensei em colocar a sinopse por aqui, mas desisti. Um porque posso me comprometer com direitos autorais. Dois porque a sinopse não encanta muito (e olha que procurei por aí).
Na pesquisa dos textos me surpreendi com a péssima crítica de Chico Fireman. Gostei muito de Billy Elliot, mas acho que o próprio Daldry não gostaria da comparação entre os dois filmes. "O Leitor" vai muito além de uma discussão sobre o holocausto. É preciso ter um pouco mais de sensibilidade para captar as múltiplas mensagens do filme: amor, solidão, frustração, ignorância, injustiça, remorso, superação. Tudo isso - e mais um pouco - se sente na frente da tela. E quem não sente - tenho medo de afirmar, mas... falta feeling.

quinta-feira, 19 de março de 2009

O patrão devia e não pagava não. O servil cobrou com a macheza de um durão. O patrão falou que não tinha perdão: foi à delegacia e o enquadrou na extorsão.

sexta-feira, 13 de março de 2009

A droga da política de drogas

Quando escrevi a monografia sobre o assunto, não estava com a falsa expectativa de que as alternativas que propus estivessem sendo cogitadas pelas principais autoridades (sic - refiro-me àuelas que mandam) do assunto. Evidentemente, a coisa é muito mais complexa.
Ontem mesmo saí surpresa de casa quando soube que alguma coisa podia mudar. E feliz também. Mas hoje meu ceticismo voltou à tona porque deu tudo errado.
Não vou me estender no assunto, mas coloco algumas questões que não me deixam em paz, principalmente quando vejo a imprensa fazer estardalhaço em cima do tráfico (a mesma impresna, aliás, que criticou o resultado da reunião das Nações Unidas de ontem):
1. Quando vamos perceber que o combate às drogas é uma guerra com graves consequências, como a morte de jovens e inocentes, em prol de uma política que não tem resultado algum, e isso está a um palmo dos nossos olhos?
2. Quando vamos deixar de criminalizar uma conduta que diz respeito apenas ao indivíduo, jamais à sociedade, e deslocar as verbas gastas com armas e aparato policial para o aparelho de saúde?
3. Quando vamos entender que a prevenção funciona melhor que a repressão?
4. Quando vamos perceber que estamos criminalizando a pobreza, e não a droga propriamente dita?
Tem muito mais. Mas acho que já desabafei.

terça-feira, 3 de março de 2009

Este episódio da morte do Nino e do Chefe de Estado Maior da Guiné-Bissau me fez lembrar alguém muito especial que veio de lá. O menino tinha fugido a pé da guerra civil e, depois que ela acabou, voltou pra casa e veio parar no Brasil pra estudar lá na faculdade. Ele sentia falta da família. Mostrava as fotos e as páginas eletrônicas biassu-guineenses com muito orgulho. E contava a história do país com fevor. Contou várias coisas: que o Nino havia estado no poder por dezoito anos e, depois de deposto, teve que sair do país; depois de algum tempo, fez um acordo com a mesma oposição que o havia deposto, para voltar ao país, e se reelegeu; não sei se é ele o mesmo presidente que embolsou metade de um empréstimo europeu sob o fundamento de que havia perdido muito dinheiro nas suas plantações de arroz durante a guerra civil. E agora esse episódio. A Europa jogou suas colônias à própria sorte. Mas acho que é isso que faz os povos mais fortes, como esse amigo meu, que lutava contra uma saudade monumental da terra e da família dele, mas não desistia das escolhas que fazia. Nunca. É assim que a gente deve encarar as coisas neste tempo de "desordem sangrenta" e "arbitrariedade consciente", para lembrar Brecht. É assim que a gente tem que ser.

domingo, 1 de março de 2009

Rotina boa da saudade

Enquanto ele acariciava seu pescoço com as pontas dos dedos, ela o contorcia para o lado contrário, como um gato mimado. Ele fazia bico, fixando o olhar nos olhos dela, e dizia que estava triste. Ela dizia que também. Depois esperava na sala enquanto ele buscava a mochila no quarto. Eles saíam pela porta coletiva do condomínio e andavam de mãos dadas até a esquina. Ela chamava um táxi. Ele a beijava, depois abraçava. Ela pedia que ele ligasse quando chegasse. Ele dizia tá bom. Ele entrava no carro e pedia a rodoviária. Ela ficava esperando-o virar o rosto para trás enquanto o motorista acelerava. Nas vezes em que ele olhava, eles se despediam num aceno de mãos. Até ele desaparecer na poeira da rua ela ficava ali, parada. Depois virava as costas e voltava para casa. E ficava aguardando ansiosamente até a semana seguinte, quando tudo se repetiria...